Espetáculo de dança com áudiodescrição do TRAMAD
Em edição especial, no dia 08 de maio, às 20hs, no Teatro do Espaço Xisto, a apresentação do espetáculo de dança Os Três Audíveis será realizada com audiodescrição ao vivo para atender também ao público deficiente visual. Essa é uma iniciativa pioneira do grupo de pesquisa TRAMADAN (Tradução, Mídia, Audiodescrição e Dança), que uniu o Instituto de Letras e a Escola de Dança da UFBa, sob a coordenação das Profas. Eliana Franco (Instituto de Letras) e Fafá Daltro (Escola de Dança/Grupo X) e participação das pesquisadoras Sandra Farias (UEFS) e Íris Fortunato (UFBa).
O grupo de pesquisa TRAMADAN surgiu a partir de outro projeto investigativo, o TRAMAD (Tradução, Mídia e Audiodescrição) criado pela Profa. Eliana Franco (Letras-UFBa) em 2004, com o intuito de promover a acessibilidade audiovisual à sociedade deficiente visual de Salvador através da audiodescrição, ou da descrição (pré-gravada ou ao vivo) das imagens de produtos audiovisuais, a fim de otimizar a compreensão por seu público-alvo. O grupo é ainda composto por Sandra Farias (UEFS), Íris Fortunato (UFBa), Manoela da Silva (UFBa) e Renata Mascarenhas (UFBa). Desde sua criação, o grupo tem-se dedicado à audiodescrição de filmes de curta-metragem. A audiodescrição de espetáculos de dança, objetivo do recente projeto TRAMADAN, é um passo inédito e audacioso em direção à efetiva inclusão do público deficiente visual na vida social e cultural da cidade.
Em Os Três Audíveis serão oferecidas três versões possíveis de audiodescrição para as diferentes cenas do espetáculo, o qual será seguido de um debate que busca verificar as preferências do público receptor. Os resultados desta iniciativa serão apresentados em congresso sobre tradução audiovisual em Montpellier, França, em junho de 2008. O espetáculo do dia 08 de maio é aberto ao público em geral, mas pede-se que o público deficiente visual chegue meia hora antes (19.30) para que possa tocar o cenário e o figurino, bem como conversar com os dançarinos.
Os Três Audíveis (Ana, Judite e Priscila), prêmio Klauss Vianna de Dança, Funarte, 2007, trata das possibilidades poéticas dos corpos, acolhendo dançarinos com e sem deficiências em comunidades onde o espetáculo é apresentado. O espetáculo busca mostrar o universo das relações interpessoais com simplicidade e humor, enfatizando as relações do cotidiano do homem urbano. Distribuídas em quadros independentes e inter-relacionados, as cenas revelam poeticamente a intimidade dos limites de um espaço particular, que pode ser representado por um olhar furtivo ou sedutor, por uma situação de espera, um convite inesperado, o medo do inesperado. A autoria é coletiva, centrada na investigação e análise das possibilidades do movimento, fundamentado através de estratégias coreográficas que utilizam improvisação em cena.
Os Três Audíveis é um espetáculo do Grupo X de Improvisação em Dança sob a direção da coreógrafa Fafá Daltro (Escola de Dança da UFBa), que desenvolve uma estética reconhecida pela crítica como valiosa para a dança contemporânea por explorar as possibilidades técnicas e poéticas de múltiplos corpos, contrapondo-se às propostas de corpos ideais, por investigar a poética da espontaneidade através da improvisação, por acolher em seu elenco dançarinos cadeirantes e por adotar procedimentos que definem um novo paradigma na arte de coreografar. O Grupo X é formado ainda por Edu O, Hugo Leonardo, Andréa Daltro, Ricardo Bordini, Jamiller Antunes, e conta com a participação de Iara Cerqueira.
Audiodescrição e Audiodescritores: Quem é Quem?
Outra generalização pouco fundamentada a respeito das sessões especiais da peça foi a feita pela jornalista Márcia Abos, para a Globo online (25/03/2007), descrevendo “o uso de experiências sensoriais para deficientes visuais” como “inédito na América Latina”. Com um pouco de pesquisa na internet, chega-se à página da União Nacional de Cegos do Uruguai, que conta outras experiências sensoriais levadas a cabo em vários países, não somente latino-americanos, desde 1999.
Histórico do Uso da Audiodescrição
Após pesquisar a legenda fechada para os surdos entre os anos 2000 e 2002, em 2004 tive o primeiro contato com a audiodescrição, em oficina de congresso sobre tradução audiovisual em Berlim, seguido de outra oficina em Barcelona em 2005, ministrada por um especialista britânico. Em outubro de 2004 fundei o grupo de pesquisa TRAM (Tradução e Mídia), registrado na UFBA e CNPq, onde investigamos, além de outros temas, a audiodescrição.
Audiodescrição e Narração ao Vivo
Uma ramificação do grupo de pesquisa da UFBA – alunas pesquisadoras voluntárias e especialistas em lazer e mobilidade das pessoas cegas – foi treinada por mim em audiodescrição de filmes para então desenvolver, desde 2005, pesquisas de recepção. Ou seja, audiodescrevemos e apresentamos filmes ou seqüências deles a grupos de cegos em Salvador (Associação Baiana de Cegos, Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual e Instituto de Cegos da Bahia) e em São Paulo (Laramara e Dorina Nowill) com o intuito de buscar um modelo de audiodescrição que satisfaça os espectadores deficientes visuais. O início do processo está documentado em publicação da Ciência e Cultura, revista da SBPC ( http://cienciaecultura.bvs.br), volume 58, no.1).
Qualidade, Tempo, Custos e Resultados
Os resultados das pesquisas de recepção do grupo (uma em São Paulo e duas em Salvador) já foram apresentados em Barcelona (junho de 2005), em Copenhague (maio de 2006), e em Salvador (dezembro de 2006, em congresso da UFBa), e estão na fila de publicação faz algum tempo em editoras do país1. Timidamente, o trabalho tem conquistado o reconhecimento internacional e algum reconhecimento regional, como o proporcionado por uma entrevista na TV Educativa da Bahia, em julho de 2006. O reconhecimento internacional veio não só dos congressos, mas do fato de eu ter cursado doutorado na Bélgica (1995-2000) e agora, estar fazendo um pós-doutorado em tradução audiovisual na Universidade Autônoma de Barcelona até o final de agosto de 2007, o que facilita muito o contato e intercâmbio de idéias. Isto tudo com o apoio da Capes, que sempre financiou meus estudos. O problema é que, após tanto investimento em conhecimento no exterior, é difícil aplicá-lo na volta ao Brasil.
Por exemplo, o Pós-Doc em tradução audiovisual enfoca a questão da acessibilidade. Entretanto, como posso desenvolvê-la, e até mesmo ensiná-la, sem recursos disponíveis para investir em equipamentos que a área exige, por exemplo, uma ilha de edição para a mixagem da audiodescrição? Por isso, a pesquisa é feita de modo quase artesanal, e muito lentamente. Aí, chega primeiro quem tem dinheiro, como a Instituição Vivo, que equipou seu teatro com fones sem fio, os mesmos que se usam em interpretação simultânea. Que bom se esse teatro fosse disponibilizado para nós, pesquisadores!
AInvisibilidade e o Não Reconhecimento
A mais recente iniciativa de promover a acessibilidade audiovisual foi a da Profa. Dra. Lívia Maria Villela de Mello Motta que, através de sua experiência na capacitação de pessoas cegas e de sua participação voluntária no Grupo Terra de Inclusão Social, acabou escrevendo o primeiro roteiro de narração para teatro no país, o da peça Andaime. E quase ninguém sabe disso também. Infelizmente, nenhuma de nós tem poder para promover o estardalhaço da mídia nacional. O comentário do entrevistado do Jornal Nacional (março 2007) Leandro Dupré, cidadão cego, após assistir à peça, de que seria bom que fizessem o mesmo com filmes, isto é, os audiodescrevessem, atesta mais uma vez a invisibilidade em que o pesquisador vive, não porque quer. Assim, todos os méritos ficam para a empresa promotora. Sim, a Vivo tem méritos, como o Programa Vivo Voluntário, que promove a capacitação de voluntários da empresa através de cursos. A narração da peça teatral Andaime, em cartaz no Teatro Vivo de São Paulo, foi desempenhada por alguns desses voluntários, orientados pelo curso ministrado pela Profa. Lívia.
Eu mesma fui conferir a iniciativa na estréia da peça ao público, no final de março passado, por ocasião de viagem ao Brasil. Contudo, para meu desapontamento, em nenhum momento, e diga-se de passagem, em nenhum lugar do site da Vivo ouvimos ou lemos algum crédito à referida professora, que ministrou o curso e escreveu o roteiro da narração da peça. É triste ver tanta dedicação sem reconhecimento. Então, nós, pesquisadores dedicados, viramos uma instituição que fez isso, fez aquilo, e que no final “criou os audiodescritores”. Justiça seja feita, o único agradecimento à professora de que tenho conhecimento foi de autoria de Paulo Romeu, conhecido ativista da causa da acessibilidade, em texto disponível no site da “Bengala Legal”. E é só.
Ora, mesmo que freqüentem um curso, os audiodescritores não se “criam” tão rapidamente, é preciso muita prática. E audiodescritor é quem escreve o roteiro, principalmente. Aqui na Europa, são cursos e cursos, discussões e discussões. Precisa-se estudar os padrões locais, as preferências nacionais, as questões culturais, não é tão simples assim fazer audiodescrição. No final, a iniciativa fica sendo uma novidade da empresa promotora, e alguns dos cidadãos cegos que ali estavam, e davam entrevistas à televisão, não tinham outro nome a mencionar e agradecer. É claro, foi a Vivo que pagou o curso ministrado pela professora aos voluntários, mas além de justo, o que representa esse valor para a empresa que se define como “a maior prestadora de serviços de telecomunicações móveis do Hemisfério Sul”?
A Vivo é uma empresa privada controlada pelos Grupos Portugal Telecom e Telefónica da Espanha. Seu programa de responsabilidade social é, sem dúvida, louvável. Mas, pensando bem, não seria mais uma obrigação do que um mérito o fato de que toda empresa que lucrasse no país, nacional ou estrangeira, contribuísse com algum setor carente da sociedade? Será que estamos tão mal-acostumados, no pior sentido da expressão? Percebi que o público deficiente visual que ali estava na sessão de teatro elogiou muito a iniciativa “da Vivo.” Claro (oops!), acostumados a nunca ver seus direitos de acessibilidade atendidos, qualquer ação é bem-vinda por parte destes espectadores. É difícil ser mais crítico sem nenhum parâmetro de comparação, é verdade.
Conclusão
O que eu tenho notado nas pesquisas de recepção é que é difícil contentar a todos os deficientes visuais ao mesmo tempo, por isso é importante que eles falem, dêem opinião sobre essa ou aquela audiodescrição, ao invés de elogiar apenas. Só assim será possível chegar a um maior consenso, embora nunca completamente satisfatório. E, desta forma, a pesquisa poderá avançar e fornecer dados precisos para que projetos sejam elaborados, como a formulação da norma de acessibilidade pela ABNT.
Pode parecer, mas não estou criticando a iniciativa da Vivo, mas o desprezo pelo trabalho acadêmico, representado aqui pelo trabalho dedicado da professora Lívia, a indiferença pela pesquisa. Espero que a Vivo continue investindo na audiodescrição cada vez mais. Espero que haja mais e mais voluntários na empresa interessados em audiodescrição. Aliás, parabéns aos voluntários da Vivo! Eles merecem! O que eu considero uma pena é o fato dos recursos disponíveis serem destinados apenas aos voluntários da empresa, sem qualquer vinculação com pesquisadores, as pessoas que produzem o conhecimento sobre audiodescrição, o profissional que forma o voluntário da empresa. Se a Vivo se dispõe a trabalhar com “honestidade, profissionalismo e transparência”, nada mais justo do que dar visibilidade a quem a ajudou. A falta de reconhecimento público do trabalho da professora Lívia é uma prova da falta de interesse, e um imenso desestímulo àqueles que realmente se dedicam à causa. Desta forma, a responsabilidade social empresarial nunca trabalhará de mãos dadas com a educação. E dá a impressão de que tudo gira em torno de autopromoção. E o pesquisador permanece invisível.
1 “A Audiodescrição Amadora e Acadêmica em Confronto: Um Estudo de Caso”, em fase de publicação; e “Em busca de um modelo de acessibilidade audiovisual para cegos no Brasil: Um projeto piloto”, publicado em Tradterm, v.13, São Paulo: Humanitas (FFLCH/USP), 2007, p.171-185.
Eliana P. C. Franco.
Professora da UFBA, Pós-Doutora UAB
Capes.CoordCNPq. Audiodescrição e coordenadora Projeto TRAMAD/DLG-UFBa